15.10.07

Circo de Ilusões

I

A manhã mal começara e Carmem já estava na rua. Pés bem calçados com os sapatos de camurça dados pela nora em algum dos seus aniversários da sétima década de vida. Já do cabeleireiro, ganhava sempre uma nova tintura. A cada ano sua cabeça mudava de cor e agora era a vez de um roxo meio desbotado misturar-se ao branco dos cabelos.

Há tempos mantinha esta rotina: acordar cedo e ir comprar o jornal do dia. Cedo também chegava Luzia, moça gorda e gentil, quietinha toda vida, para quem Carmem abria a porta antes de sair de casa. Quando voltasse da rua, o café já estaria pronto.

O jornaleiro ainda arrumava as pilhas de jornais recém-chegados quando aquele seco “Bom dia, Seu Edgar.” lhe anunciava a primeira cliente. “Bom dia, Dona Carmem.”, e dava o jornal nas mãos da velhinha.

De volta para casa, Carmem tomava o café farto e lia o jornal. Quero dizer, ler o jornal é força de expressão, porque concentrava sua atenção apenas na leitura dos resumos de novelas. Fantástico poder saber, logo cedo, o que iria acontecer bem mais tarde com todas aquelas pessoas da televisão. Era como se toda manhã recebesse a profecia de um vidente bastante competente. E, à noite, ia confirmar a previsão.

No momento, a novela que acompanhava assiduamente era a das sete, “Circo de Ilusões”. Invariavelmente, o resumo do capítulo do dia era lido em voz alta para si mesma (Luzia ouvia por tabela enquanto fazia a faxina), e neste dia foi assim: “Vicente diz à Marcela que estava trabalhando. Berenice diz à Margarida que ninguém pode saber o que ela escondeu no armário e pergunta à Letícia se ela ama Vladimir. Jair diz a Pedrinho que é seu pai. Rosária diz à Alice que o tio de Vicente não é confiável e as duas trocam desaforos. No hospital, Jair pede perdão à Verônica.”.

Café tomado e resumos conferidos, Carmem ia andar pela rua e visitar as amigas. Neste dia foi à casa de Dona Ivone, cuja empregada Marluce sempre preparava deliciosos comes e bebes.

- Esse suco de melancia da Marluce é uma delícia, Carmem. Nunca provei melhor. É de tomar com gosto!

E as duas iam tarde adentro, petiscando e conversando sobre qualquer coisa que as fizesse sentir que tinham alguma opinião a ser dada, ainda que meio gasta. Pelo menos Marluce seria preenchida de importante experiência sobre a vida ao ouvir em silêncio aquelas conversas, certamente muito enriquecedoras para ela. A empregada também tomava o suco e comia alguns pasteizinhos, mas sentava-se não no sofá, e sim num banquinho ao meio caminho entre a sala e a cozinha. Parecia preferir ficar a postos, caso fosse necessário fazer algo mais na cozinha.

Como sempre, lá pela hora do chá, Dona Ivone recebeu a visita da prima Amélia, pessoa cuja vida se resumia a missas e orações. Após cinco minutos de conversa, indispensáveis à boa educação, Carmem piscou o olho para Ivone, alegou alguma tarefa em casa, e despediu-se impaciente com as já sete menções de Amélia a trechos da Bíblia.

No caminho até seu prédio, Carmem demorou-se mais que o usual. Ficou olhando algumas vitrines, mas não pesquisava preços nem admirava as novas coleções da estação. Na verdade, ela estava pensando sobre Amélia. Como podia aquela mulher tirar tanta segurança para sua vida através de alguns escritos antigos? A Bíblia sempre lhe soou tão ficcional que Carmem nunca entendeu como as pessoas têm na religião um chão de certezas.

II

Quando chegou ao apartamento, Luzia já havia ido embora. A velhinha tomou um banho, pôs a camisola, esquentou água pro café e ajeitou o banquinho de descanso para os pés em frente à poltrona. Preparava-se para a novela. Quase sete horas, pegou o jornal e sentou-se, a fim de revisar o resumo do capítulo. O telefone tocou e Carmem levantou entre resmungos:

- Alô?

- Boa noite, é a senhora Carmem?

- É sim, quem é?

- Oi, senhora Carmem, tudo bom? Meu nome é Aparecida e estou ligando da central Interconect de comunicações para estar lhe apresentando nossas novas promoções.

- Hum. — Carmem reparou que acabara a novela das seis, prenúncio de que logo se iniciaria a das sete.

- Agora estamos oferecendo um pacote de televisão a cabo mais internet banda larga por metade do preço. A senhora leva os dois e paga como se fosse por um só.

- Não uso computador.

- Ah sim, entendo, senhora Carmem. Se a senhora desejar, podemos estar botando a senhora em contato com uma de nossas lojas de eletrônicos para a senhora estar adquirindo um computador. Mas e a televisão a cabo, não lhe interessa?

- Passa novela nisso?

- Não exatamente novela, senhora, mas temos séries, filmes, shows, variedades.

- Então não me interessa.

A velhinha voltou a atenção para a TV, viu que “Circo de Ilusões” já estava na vinheta de abertura e bateu o telefone na cara da intrometida do telemarketing. “Droga, droga!”, amaldiçoou a ligação impertinente. Tinha perdido a parte inicial do capítulo. Talvez Vicente já tivesse dito à Marcela que estava trabalhando. Carmem acomodou-se na poltrona prometendo a si mesma não atender ligação que não fosse durante o intervalo. Nesse momento, Vicente aparecia na tela, mas ele não dizia à Marcela que estava trabalhando, e sim desabotoava o vestido da secretária em sua sala na empresa. Carmem pensou que ele devia falar com Marcela no final do capítulo. Cena seguinte, Berenice no sótão da casa de Vladimir com um quadro de árvore genealógica nas mãos onde se via o nome de Vladimir e de Letícia bastante próximos nas ramificações. Corte para a próxima. Jair falava ao telefone que teria de viajar a trabalho e não poderia passar o final de semana com Pedrinho. Intervalo.

Carmem estranhou. Releu o jornal, confirmando que nenhuma das coisas ditas no resumo do capítulo havia acontecido ainda. Confirmou também o dia: quarta-feira. Sim, era quarta-feira! “Nossa, será que esse capítulo será mais longo? Vai ficar tudo pra acontecer no final.” Levantou-se e foi pegar mais uma xícara de café.

Mas parecia mesmo que o capítulo seria longuíssimo porque quando a novela voltou, novamente nada do que estava escrito no jornal aconteceu.

- Nossa! Eles deixaram tudo pra terceira parte? Ou será que hoje não vão passar as notícias na TV e prolongaram a novela? Mas não avisaram nada. Que coisa.

Chegou a terceira parte, já eram quase oito horas da noite e a cada seqüência do capítulo Carmem franzia mais o cenho, desconfiada. O que via na televisão desdizia tudo que estava escrito no jornal. A velhinha, incrédula, começava a se sentir fraca e desestabilizada. Apertava os braços da poltrona e encolhia-se nela, olhando para os lados, como se procurasse uma testemunha para fato tão inusitado.

O capítulo terminou e Carmem, imóvel, boquiaberta, não acreditava no que havia assistido. Rosária parabenizara Alice pelo noivado com o tio de Vicente. E Jair nem ao menos chegou a ir ao hospital onde Verônica estava internada! Certamente algum engano havia sido cometido.

Ainda enterrada na poltrona, esperou pelo noticiário após a novela, na esperança de que algum comentário fosse feito. Alguma matéria deveria denunciar esse erro execrável. Mas os apresentadores não tocaram no assunto e Carmem, desenganada, decepcionou-se.

Embora a televisão continuasse a programação como se nada de irregular houvesse acontecido, a velhinha não se conformava. Resolveu ligar para a central de atendimento do canal de televisão e, depois de esperar um bom tempo, foi atendida por uma moça que lhe afirmou não haver nada de errado com a programação. Carmem desesperou-se:

- Mas como não há nada de errado?! O Vicente não disse à Marcela que estava trabalhando! A Rosária deu parabéns para a Alice pelo seu noivado com o tio do Vicente! Veja bem. Parabéns, ela deu parabéns, compreende? Tinha mesmo é que trocar desaforos com a mulher! E o Jair, então. Nem foi ao hospital, meu Deus! Tá tudo errado!

A atendente não teve muita paciência com a gritaria de Carmem e repetiu que o capítulo transmitido no dia foi o que realmente estava agendado. Depois fingiu que ia transferir a ligação para outro ramal e a deixou ouvindo anúncios gravados.

- Mal educada! Vou é ligar para o jornal!

Carmem discou um novo número e dessa vez não demorou muito até ser atendida. De novo, disse que estava tudo errado, que o episódio transmitido pela TV não correspondia ao episódio descrito no jornal. A atendente checou os resumos no jornal e, mais uma vez, Carmem foi contrariada:

- Desculpe, minha senhora, mas não há engano nenhum. Os resumos publicados são os resumos enviados para os capítulos de hoje mesmo.

- Como pode? Não aconteceu nada do que o jornal disse que ia acontecer! Vocês estão enganados! — os decibéis subiam a cada palavra proferida.

- Estou com os resumos do dia aqui na minha frente e todos eles foram publicados...

- Ah! – Carmem cortou a atendente – Vocês são todos uns incompetentes, uns pilantras! Eu acordei cedo, fui comprar o jornal, me preparei pra ver a novela. Tudo isso pra que? Pra ser enganada! Traída! Olha, eu que não compro mais o jornal de vocês, ouviu, não compro mais! Passar bem!

- Mas senhora...

A velhinha bateu o telefone na cara da atendente e começou a dar voltas na sala. Pegou o jornal, releu o resumo do capítulo mais uma vez e o jogou em cima da mesinha da sala, de onde escorregou, meio amassado, para o carpete. Voltou ao telefone.

- Alô? Ivone?

- Oi, Carmem.

- Você não sabe o que me aconteceu, Ivone. Olha só, hoje o resumo da novela no jornal estava todo errado, não aconteceu nada do que eles escreveram. Ou então foi a TV que passou o capítulo errado, não sei. Mas bem, liguei pra TV e pro jornal, reclamei e os dois me falaram que não tinha nada errado! Uns cínicos, mentirosos!

- Que estranho. Se eu tivesse o jornal aqui, até pegava pra ver o resumo da novela, mas a Marluce já foi embora e sempre leva o jornal com ela.

- Ah, Ivone, estou revoltada! Essa gente não consegue admitir quando erra! Ó, eu é que não vou acordar amanhã cedo pra comprar jornal. Uma coisa dessas é pra perder o leitor! Não vou mesmo!

- É, tá certo, Carmem, esse pessoal nem liga pro consumidor.

- É, e olha que estava lá escrito: “Vicente diz à Marcela que estava trabalhando. Rosária troca desaforo com Alice. Jair pede perdão à Verônica no hospital.”. Mas não aconteceu nada disso! E ninguém fala nada. Eu não entendo.

- Vai entender... — As duas ficaram em silêncio por alguns segundos num acordo tácito de que não se podia fazer mais nada para desvendar o mistério — Bem, Carmem, eu estava indo tomar um banho quando você ligou.

- Ah, sim, Ivone, vai lá tomar seu banho.

- Amanhã nos falamos, você pode vir aqui à tarde.

- Sim, sim, ou você aqui. A Luzia também faz umas comidinhas muito boas.

- Está certo, combinamos amanhã então. Boa noite, Carmem, tchau.

- Tchau, Ivone, boa noite.

Carmem tentava em vão se convencer de que o que acontecera não tinha sido nada demais, mas não conseguia. Poderia ter sido um erro qualquer, uma falha sem importância, mas nunca tinha visto isso antes e, mais estranho ainda, por que nem a TV nem o jornal admitiram o engano? Estava realmente intrigada, mas nada mais podia fazer e então deu de ombros, decidida a ir se deitar. O sono não veio nos primeiros minutos, mas, para quem achou que poderia passar a noite em claro, até que foi bem rápido.

III

Na manhã seguinte, acordou cedo. Apenas para Luzia não ficar do lado de fora. A moça entrou e Carmem manteve o que dissera no dia anterior. Falou à Luzia que não era preciso preparar logo o café, que ia voltar pra cama, dormir um pouco mais e que ela podia ir fazendo a faxina. A empregada fez uma expressão que não chegou a se definir bem no seu rosto, dando a entender que não compreendia aquela súbita mudança de rotina, mas ciente de que não precisava receber uma explicação.

Não faltava muito para a hora do almoço quando Carmem saiu do quarto. A faxina já havia sido feita, a sala estava arrumada, as louças lavadas. Luzia passava roupas na área-cozinha.

- Luzia, você prepara um café pra mim? Mas não precisa ser muita coisa, se não fico sem fome pro almoço. Ou será que é melhor comer logo um almoço? Já vai dar a hora. — A mulher mexeu nos cabelos roxos desbotados — bem, faz um queijo-quente então que assim não fica nem café nem almoço. E um suco de laranja, por favor.

- Sim, senhora.

A velhinha andou em direção à sala e de repente parou encostada na parede, entre a cozinha e a sala. Coçou a cabeça, remexendo de novo o roxo desbotado, e de costas para Luzia, fez a pergunta:

- Você viu por aí o jornal de ontem? Acho que estava aqui na mesinha da sala.

- Vi sim senhora, foi pro lixo.

- O quê? – a espinha de Carmem endireitou.

- Joguei no lixo, Dona Carmem. No lixo aí do prédio.

A velhinha voltou-se para a moça com um espanto que logo perdeu espaço para a raiva indisfarçável.

- Como jogou no lixo Luzia?! Quem te disse pra jogar o jornal no lixo Luzia?!

- Ué, não era de ontem? Eu sempre jogo fora, a senhora nunca reclamou, sempre foi assim. — As últimas palavras foram mais ruminadas do que pronunciadas.

- Mas não podia Luzia! Esse não podia! — disse Carmem, levando as mãos à testa e balançando a cabeça.

A moça silenciou. Nunca o espaço daquela área-cozinha parecera tão pequeno para ela. Não entendia por que um ato rotineiro do cuidado da casa tornara-se, neste dia, uma falha grosseira. Queria perguntar pelo motivo daquilo ter sido um erro, mas sua boca não conseguiu se desvencilhar dos dentes fortes que a aprisionavam. Carmem reparou o desespero brecado no rosto de Luzia e suspirou. Com os ombros caídos, andou até a moça e ia começar a lhe dizer palavras mansas quando o telefone tocou. “Tudo bem, Luzia, tudo bem”, limitou-se, acariciando com a mão dura o braço da moça, antes de atender o telefone.

Era Ivone. Perguntou o que era mesmo que estava escrito no resumo do capítulo da novela no jornal de ontem. Carmem deu um pequeno grunhido olhando de rabo de olho para Luzia para depois falar:

- Pois é, não estou mais com o jornal. Mas vou tentar lembrar. — Disse então para Ivone as mesmas coisas que tinha dito na noite anterior, e o que mais lembrou na hora.

- Caramba! Olha Carmem, eu vou ter que sair agora, fazer umas coisinhas na rua, mas venha aqui em casa hoje, lá pela nossa hora de sempre, que quero te mostrar um negócio. — disse Ivone.

Carmem disse que sim e desligou.

Depois de comer o queijo-quente liberou Luzia, já que a casa não precisava de outra faxina e que iria comer à tarde na casa de Ivone. Preferiu ficar sozinha mais cedo naquele dia, precisava pensar sobre o que ocorrera na noite anterior. Que dificuldade tirar uma conclusão!

IV

A tarde se arrastava, mas enfim chegou a hora de Carmem sair. Seguiu caminho para a casa da amiga. Ivone a recebeu com um jornal na mão.

- Carmem, Carmem, olha só! Olha aqui o resumo do capítulo de hoje! Lê isso aqui! — apontava no jornal um trecho com o título “Circo de Ilusões: quinta-feira”.

A velhinha leu e, a cada frase, seus olhos se arregalavam mais e pronunciava um “Nossa!” num crescendo de ênfase, como se aumentasse seu senso de alerta depois de cada ponto final no resumo do jornal.

- É isso! É exatamente isso, Ivone! Foi isso que eu li no resumo do jornal de ontem! Igualzinho! – disse Carmem batendo com a mão no jornal.

- Pois é, Carmem, quando eu li hoje, suspeitei. Achei que tinha algo parecido com o que você me contou ontem.

- Então é isso, os safados do jornal erraram, trocaram o dia! Botaram no jornal de ontem o resumo do capítulo que é de hoje! Foi isso que aconteceu! – Carmem se animava com a resolução do grande enigma, mas Ivone não a acompanhou. Falou também com entusiasmo, mas um pouco mais pausadamente:

- Não, Carmem, também pensei nisso, mas acho que não é verdade. Eu não li o jornal de ontem, mas a Marluce leu. Inclusive o resumo do capítulo da novela e, ainda que ela não lembre exatamente o que estava escrito, não achou que estava tudo errado quando assistiu ao capítulo na televisão. Exatamente por isso, não voltou a conferir o resumo e não se lembra dele.

Carmem boquiabriu-se e seu pensamento criou certa resistência em aceitar aquelas palavras que os ouvidos tão gentilmente deixaram passar. Antes os tivesse tapado depois de concluir a indesculpável falha do jornal. A velhinha olhou para Marluce, que, nervosa, roia as unhas e envergava o corpo para trás como se quisesse se esquivar da inevitável destruição da conclusão de Carmem, mas não tivesse como não admitir que Dona Ivone estava certa.

- Se ela não sentiu nada de errado, é porque o resumo no jornal e o capítulo na televisão corresponderam. E, Carmem, — aqui botou a mão no ombro da amiga — além da Marluce, conhecemos muita gente que lê o jornal e vê a novela. Não sei o que aconteceu, mas não ouvi mais ninguém falar disso. E ainda tem o pessoal do jornal, que disse que estava tudo certo, não é? E o da TV também, não foi? — rematou Ivone numa postura honesta de quem não queria ter uma resposta falsa, mas também insinuando que talvez aquilo tudo não fosse um verdadeiro problema.

- Foi. — Carmem deitou a voz mais desanimada

Fez-se silêncio. Aquela primeira conclusão era insustentável e isso deixou Carmem desamparada. Cabisbaixa, olhava para o chão, sem esperanças de arranjar alguma outra explicação para o mistério. Ivone olhava para a amiga desiludida e com a mão carinhosamente apoiada em seu ombro, tentava confortá-la, ainda que sua testa franzida revelasse que não tinha desistido de achar alguma resposta. Ou talvez cogitasse um princípio de insanidade ou esclerose em Carmem. De repente, uma voz plácida, lacônica, até heróica talvez, apresentou-se:

- Tem coisas que só se explicam pela divindade.

Era Amélia, esquecida no sofá deserto, no canto da sala. As outras três mulheres a olharam com espanto. Tão absorvidas estavam pela discussão, que haviam se esquecido de Amélia, quieta e sentada, tomando chá. E Carmem nem notara a presença da prima de sua amiga, já que ela mesma mal tinha respirado desde sua entrada na casa.

A frase de Amélia soou dura como um tijolo, mas por algum estranho motivo, Carmem aceitou a tijolada e se interessou. E, enquanto Ivone já ia dizendo “Não fale bobagens, Amélia.”, a voz de Carmem surgiu mais alta:

- Divindade? Como assim?

A própria Amélia estranhou o interesse de Carmem, mas não negaria sua fala a quem a solicitava tanto. Virou-se para a mulher e, com as duas mãos juntas no colo, disse:

- Não tem muito o que explicar, Carmem. Tem coisas que são de natureza divina, simplesmente acontecem e são uma benção para aqueles que as recebem.

- Eu fui abençoada? — Carmem deu um pequeno salto no sofá.

- A novela é importante para você, não é? – Carmem balançou rapidamente a cabeça afirmando que sim – É algo que você acompanha, que faz parte da sua vida. Ontem, você, e ao que me parece, somente você, olha só, ficou sabendo, antes de todo mundo, como seria o capítulo de hoje. Porque saiu hoje no jornal o resumo que só você, Carmem, tinha lido ontem. E foi procurar explicações para isso, ligou para a TV, para o jornal. Mas a verdade é que não tem explicação. Tudo foi como uma visão, um pequeno milagre.

Carmem ouviu com muita atenção e ao final das palavras de Amélia, olhou para baixo, botou a mão no queixo e começou a balbuciar “Eu tive uma visão.”, bem baixinho, às vezes em tom de afirmação, às vezes em tom de interrogação, como se estivesse testando aquele pensamento em sua cabeça.

Nessa hora, Ivone cochichou ao pé do ouvido de Marluce que Carmem estava ficando louca e percebeu que tinha que agir. “Gente, não é porque a Carmem leu no jornal de ontem o capítulo de hoje que Deus manifestou-se na Terra e nasceu na vida dela.”, disse Ivone, com uma voz falsamente amável, sem conseguir esconder o quanto aquilo lhe parecia patético. Amélia não tomou a fala de Ivone como uma crítica à sua forma de compreender as coisas e sugeriu, ainda com as mãos juntas no colo:

- Já são quase sete horas, vamos assistir à novela e ver se realmente acontece tudo o que a Carmem sabe desde ontem.

- Vamos! — Carmem levantou a cabeça de repente, dando uma pausa no seu contínuo balbuciar.

Ivone não ficou muito satisfeita, mas não havia o que fazer. Sentou-se no sofá, do outro lado de Carmem. Tamanha expectativa e grande ansiedade cercavam aquele grupo de mulheres que até Marluce sentiu que devia integrá-lo, sentando-se também no sofá, do lado da patroa. Ninguém criou caso.

A novela começara. As cenas iam se sucedendo e, caramba, acontecia tudo o que Carmem dissera no dia anterior! Tim-tim por tim-tim! Vicente disse à Marcela que se atrasou por causa do trabalho. Berenice disse à Margarida que ai dela se alguém souber o que estava escondido no armário e também perguntou à Letícia sobre seu amor por Vladimir. E assim, de seqüência em seqüência, era confirmada a visão de Carmem e ela levava as mãos à boca abafando o “Não acredito!” e olhava espantada para Amélia, que só fechava e abria lentamente os olhos. A cada “Não acredito!” Carmem acreditava ainda mais na hipótese proposta por Amélia. Até a última cena do capítulo, quando Jair pediu perdão à Verônica. No hospital.

- Meu Deus do céu! Eu tive uma visão! — Carmem se pôs de pé num sobressalto que assustou as outras três mulheres. — Fui abençoada! Tive uma visão! Uma visão! — Pasma e risonha, dava voltas pela sala e parava para abraçar Amélia, que parecia bem satisfeita, enquanto Ivone e Marluce permaneciam caladas.

V

Naquela noite, já em casa, Carmem demorou a dormir. Uma abençoada como ela não deveria precisar de muito descanso. E quando acordou, mesmo cedo, sentiu-se revitalizada, pessoa diferente de antes, muito especial agora. Voltou a sair para comprar o jornal, imaginando a possibilidade de uma nova visão. E quando o Seu Edgar da banca de jornal perguntou “Não veio comprar o jornal ontem, Dona Carmem? Aconteceu alguma coisa?”, a velhinha respondeu:

- Não precisei do jornal pra saber da novela, Seu Edgar. Tive melhor informante. — E saiu andando com um sorriso zombeteiro e confiante, deixando a cara de incompreensão do jornaleiro para trás.

3 comentários:

Anônimo disse...

nao consigo mais escrever 1 comentario no seu blog. mas a historia de dona carmem estava ótima!!! gostei!!
bjoos

Anônimo disse...

Pobre Dona Carmem..uma vez em uma reunião de condomínio um senhor disse isso, "se a Net sair do ar o que eu faço? eu sou aposentado"...
Adorei o dialogo com a telefonista também!!!!

Parabéns Leozinho você esta criando uma linguagem cada vez mais peculiar e cada vez mais sua!!!

Beijos

Bel de Nonno

Anônimo disse...

Será que dona Carmen teve mesmo uma visão? Ou de tanto acompanhar as novelas ela já deduz o que vai acontecer? incosciente, incosciente...hehehehe
grande bjo leozito!!!